A psicanálise, desde sua fundação por Sigmund Freud no final do século XIX, tem sido um campo fértil para a exploração das complexidades da sexualidade, das subjetividades e do gênero. A evolução das concepções psicanalíticas sobre esses temas reflete não apenas mudanças teóricas, mas também transformações sociais e culturais que desafiam as normas estabelecidas.
Freud, ao introduzir conceitos como inconsciente, a repressão e a sexualidade infantil, lançou as bases para uma nova compreensão do ser humano que também desafiava um certo status quo. No entanto, as discussões sobre sexo e gênero na psicanálise não se esgotam em Freud; pelo contrário, ao longo do século XX e até o presente, diversos autores tensionam essas concepções, refletindo as mudanças sociais e culturais que impactaram a subjetividade humana.
Freud enfatizou a sexualidade como um componente central da vida psíquica. Em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905) argumentou que a sexualidade não se restringe à reprodução, mas abrange uma gama de experiências e desejos que moldam a personalidade. Sua teoria do desenvolvimento psicossexual inclui as fases oral, anal, fálica, latente e genital, fases em que diferentes zonas erógenas são investidas e desinvestidas ao longo do amadurecimento.
Desde cedo, nossa corporeidade abrange uma gama de experiências e desejos, prazeres e desprazeres. A introdução do conceito de “pulsão”, definido por ele, como o fronteiriço entre o soma e a psique, permitiu uma compreensão mais ampla da sexualidade, que não se limitava ao ato sexual em si, mas incluía uma variedade de expressões e finalidades. A sexualidade perversa-polimorfa, segundo Freud, cede à visão de uma sexualidade marcada por uma binariedade, onde o masculino e o feminino eram vistos como opostos complementares. Essa dicotomia, embora revolucionária para sua época, não contemplava a diversidade das experiências de gênero e sexualidade que emergiriam nas décadas seguintes. Apesar de sua noção de libido e a distinção entre sexualidade infantil e adulta terem sido revolucionárias, foram também controversas, especialmente em um contexto patriarcal que frequentemente marginalizava as vozes femininas.
Na história da psicanálise, a própria história da homossexualidade teve seus altos e baixos, ora sendo vista como patologia, ora como um impeditivo para exercer o ofício. Por exemplo, Karl Abraham considerava a homossexualidade uma condição insuperável que impedia a capacidade de um indivíduo de exercer a profissão de analista. Já Ernest Jones, como presidente da International Psychoanalytical Association (IPA), expressou a ideia de que a homossexualidade poderia comprometer a prática analítica, refletindo uma visão negativa predominante na época. Ao longo do século XX, a psicanálise passou por transformações significativas, especialmente com a introdução de novas teorias, como as de Lacan. Lacan, por sua vez, propôs fórmulas de sexuação que, embora tenham contribuído para a compreensão da sexualidade, também foram criticadas por psicanalistas contemporâneos que consideram que essas fórmulas não abrangem a diversidade das experiências de gênero e sexualidade, especialmente no que diz respeito a sujeitos trans e outras identidades não binárias.
As fórmulas de sexuação de Lacan, tradicionalmente fundamentadas em uma dicotomia entre masculino e feminino, podem ser reinterpretadas como um ponto de partida para a exploração da fluidez de gênero. Em vez de serem vistas como categorias fixas, essas fórmulas podem ser adaptadas para reconhecer que as identidades de gênero se situam além da binariedade. Essa flexibilidade permite uma multiplicidade de expressões e experiências, refletindo a realidade contemporânea em que muitos indivíduos não se identificam estritamente como homens ou mulheres. A desconstrução da binariedade, portanto, é uma necessidade premente, pois a crítica contemporânea às teorias de Lacan enfatiza que o masculino e o feminino não são opostos complementares, mas partes de um espectro mais amplo de identidades. Além disso, o conceito lacaniano de “feminino” como um campo de desejo que desafia definições tradicionais pode ser ampliado para incluir uma gama mais vasta de experiências de desejo. O desejo, longe de ser uma experiência unidimensional, se manifesta de maneiras diversas, e as identidades de gênero são parte desse campo dinâmico.
O gênero se revela um operador crucial para repensar as relações entre corpo, sexo e construções identitárias. A psicanálise contemporânea deve, portanto, reavalia suas concepções sobre homossexualidade e perversão, considerando as novas configurações sociais e as demandas por reconhecimento e inclusão. A prática psicanalítica, ao incorporar as novas teorias de gênero, pode se beneficiar de uma escuta de não-ditos. Quando os analistas reconhecem e respeitam as identidades de gênero de seus pacientes, eles não apenas promovem um espaço seguro, mas também facilitam a exploração de questões profundas relacionadas à identidade, ao desejo e à subjetividade.
Deste campo interseccional, conceito que considera como diferentes formas de opressão e discriminação se interconectam. A interseccionalidade permite que os analistas compreendam como fatores como raça, classe, sexualidade e gênero se entrelaçam na formação da identidade e na experiência do sofrimento. Essa abordagem renova a práxis, reconhecendo-o que ela não opera em um vácuo; ela é profundamente influenciada pelas mudanças sociais e culturais que ocorrem ao seu redor. À medida que a sociedade tensiona, aceita e repensa, não sem violência, a diversidade de gênero e sexualidade, a psicanálise deve se ocupar do que esse encontro de gozos produz. Isso não significa apenas a inclusão de novas teorias, mas também um compromisso ativo com a justiça social e a luta contra a discriminação.
Neste debate é imprescindível que reconheça-se a diferença entre sexo e gênero. Essa diferenciação é crucial para desmistificar preconceitos e ampliar o entendimento sobre as experiências humanas, especialmente em relação às pessoas que não se encaixam nos “padrões” tradicionais de gênero. No senso comum, muitas vezes, o sexo é confundido com gênero. O sexo é geralmente entendido como uma classificação biológica, que se baseia em características orgânicas como cromossomos, órgãos reprodutivos e genitais. Assim, a sociedade tende a categorizar as pessoas como homens ou mulheres, de acordo com essas características físicas. Essa visão binária e rígida ignora a complexidade das identidades de gênero, que vão além do que é determinado biologicamente.
Por outro lado, o gênero é uma construção social que se refere à classificação pessoal e social das pessoas como homens ou mulheres, orientando papéis e expressões de gênero. Essa definição implica que o gênero é uma experiência subjetiva e pode não corresponder ao sexo atribuído ao nascimento. Por exemplo, uma pessoa pode nascer com características biológicas que a classificam como mulher, mas se identificar como homem ou como uma pessoa não-binária. Essa realidade desafia a noção tradicional de que gênero e sexo são sinônimos.
A confusão entre esses conceitos pode levar a estigmas e discriminações, especialmente contra pessoas transexuais e não-binárias, que frequentemente enfrentam dificuldades em serem reconhecidas e respeitadas em suas identidades.
A transgeneridade é um termo guarda-chuva que abrange pessoas cuja identidade de gênero não se alinha com o sexo que lhes foi atribuído ao nascimento. Isso inclui indivíduos que se identificam como transsexuais, travestis e não-binários. A transgeneridade desafia a noção binária de gênero, reconhecendo que a experiência de gênero é diversa e multifacetada.
As pessoas transsexuais são aquelas que buscam alinhar sua identidade de gênero com seu corpo, muitas vezes através de intervenções médicas, como hormonioterapia ou cirurgias. Por exemplo, uma pessoa que foi designada mulher ao nascer, mas se identifica como homem, pode optar por realizar uma transição para se sentir mais confortável em seu corpo. Essa transição pode incluir mudanças na aparência, nome e pronomes.
As travestis, por sua vez, são uma identidade cultural específica, predominantemente encontrada na América Latina. Travestis geralmente se identificam com um gênero que não se encaixa nas categorias tradicionais de homem ou mulher, e muitas vezes adotam uma estética que mistura elementos de ambos os gêneros. A travestilidade é uma expressão de gênero que desafia as normas sociais e culturais, e as travestis frequentemente enfrentam discriminação e marginalização.
A sexualidade refere-se à capacidade de uma pessoa de sentir atração sexual e emocional por outras. É um aspecto intrínseco da identidade humana e pode se manifestar de diversas formas. A homossexualidade é uma orientação sexual em que uma pessoa sente atração por indivíduos do mesmo gênero. Assim, um homem que se sente atraído por outros homens é considerado homossexual, assim como uma mulher que se sente atraída por outras mulheres.
Por outro lado, a cisgeneridade refere-se a pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído ao nascimento. Por exemplo, uma pessoa que nasceu com características biológicas femininas e se identifica como mulher é considerada cisgênero. Essa identidade é frequentemente vista como a norma na sociedade, o que pode levar à invisibilidade das experiências de pessoas trans e não-binárias.
Além desses conceitos, é importante mencionar a expressão de gênero, que se refere à forma como uma pessoa se apresenta ao mundo, incluindo sua aparência, comportamento e modos de interação. A expressão de gênero pode ou não corresponder à identidade de gênero de uma pessoa e é influenciada por normas culturais e sociais.
FABRÍCIO DA SILVA
PSI
Para saber mais:
AMBRA, Pedro. A psicanálise é cisnormativa? Palavra política, ética da fala e a questão do patológico. Periódicus, Salvador, n. 5, v. 1, p. 101-120, maio-out. 2016. Disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus
CANAVÊZ, Fernanda. Raça, gênero e classe social na clínica psicanalítica. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 52, n. 2, p. 79-102, 2020.
CECCARELLI, Paulo Roberto. Psicanálise, sexo e gênero. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte-MG, n. 48, p. 135–146, dez. 2017.
Freud, S. (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Compreendendo a Diversidade: Gênero, Transgeneridade e Sexualidade. Texto original. Brasília, 2023.
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