O drama edípico (seu mito trágico) e seu atravessamento têm origem datada no pensamento freudiano, começando com a “Carta 69” a Fliess e em “A Interpretação dos Sonhos” (1900), onde, embora o termo “Édipo” não seja utilizado, a temática está presente. Em “Totem e Tabu” (1913), Freud explora a relação entre o Édipo e a cultura. Além disso, em “O Futuro de uma Ilusão” (1927), ele reflete sobre a moralidade e a figura do pai, e em “Análise da Fobia de um Menino de Cinco Anos” (1909), apresenta um caso de análise que toca em questões edipianas. Em “Bate-se numa Criança” (1919), o Édipo é abordado em um contexto de violência, entre muitos outros textos (sugiro a leitura da tese de Miguelez, 2009), onde Freud desenvolve diversos desdobramentos, inflexões e construções a partir de seus achados clínicos.
A travessia do Complexo de Édipo representa nossa verdadeira entrada no mundo humano, onde coexistem nossos ódios e amores, assim como a capacidade de restituição, reparação e separação. Essa dinâmica é resgatada desde seu modelo arcaico, como pensava Klein, no primado da relação diádica entre o bebê e o cuidador primordial, e, posteriormente, com a entrada de um terceiro interditor nessa relação. Desde cedo, o bebê escolhe para quem rir, para quem chorar, para quem pedir e negar o colo, e a quem corresponder com a voz e o pedido gestual. O bebê vai desenvolvendo, ao mesmo tempo em que é dotado, uma estrutura arcaica edípica, que vai marcando e deixando seus rastros, não ditos, que influenciarão as posturas e imposturas do sujeito adulto em relação aos outros ao seu redor. O atravessamento do Édipo é o que nos permite vivenciar uma partilha com a comunidade, sem a necessidade de negar a existência de outros que, em determinados momentos, nos deixam embaraçados, nos excluem ou não nos desejam.
Embora o Complexo de Édipo tenha suas raízes na obra de Freud, ele não se limita a essa origem, expandindo-se em novas direções dentro de diferentes escolas de pensamento e se contextualizando na formação do sujeito contemporâneo, assim como nas novas psicopatologias. Na tradição neokleniana, a travessia pela situação edipiana é vista como um caminho para a liberação e a apropriação subjetiva da potencialidade criativa e da potência sexual genitalizada. Essa travessia, no entanto, não deve ser encarada de forma restrita, como uma visão limitada do sexo e do gênero, conforme articulado pelos primeiros psicanalistas, nem como uma leitura rígida da estrutura da perversão. Em vez disso, o Édipo deve ser compreendido como uma possibilidade de ingressar no mundo humano com uma sexualidade genital liberada e potencializada.
Édipo em um contexto contemporâneo convoca a reflexão das novas formas de subjetivação e as transformações nas dinâmicas familiares e sociais que influenciam nossa experiência do amor, do ódio e da exclusão. A compreensão do Édipo é ampliada para incluir as diversas configurações familiares e culturais que desafiam o modelo tradicional, questionando a teoria além de uma dureza neutra e abstrata que não dialoga com as particularidades locais. Essas particularidades, embora individualizantes, são também compartilhadas, formando uma rede simbólica de trocas na gramática territorial daquele falante.
Násio, em “Édipo, o Complexo do qual Nenhuma Criança Escapa”, concebe o Édipo como uma realidade, uma fantasia, um conceito e um mito. Primordialmente, o Édipo se apresenta como uma fantasia que se manifesta em duas dimensões: a fantasia infantil que opera no inconsciente do paciente e uma segunda fantasia, que é reconstruída na dinâmica da relação entre analista e analisando. Essa crise edipiana pode ser esquematizada em duas etapas: inicia-se com a sexualização dos pais e culmina na dessexualização, resultando na formação da identidade sexual adulta.
Sob uma perspectiva decolonial, o mito de Édipo é tensionado em relação à sua origem e ao contexto cultural europeu que fundamentou a psicanálise. A escolha do mito de Édipo como um dos pilares da teoria psicanalítica reflete uma visão eurocêntrica, limita-se a um saber e produção do mito numa localidade circunscrita, desconsiderando as diversas produções mitológicas e culturais presentes em outras sociedades, como a mitologia iorubá. Rita Segato, em “O Édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça”, articula o conceito de Édipo ao questionar sua universalidade e suas manifestações em contextos culturais específicos, como o brasileiro. Segato argumenta que a experiência do Édipo no Brasil é marcada por uma dupla negação: a negação de gênero e a negação de raça.
Na mitologia afro-brasileira, o mito de Logum-Edé representa uma inscrição singular da lógica edípica, revelando uma complexa teia de relações familiares e desejos que ecoam a narrativa grega de Édipo. Oxum, uma rainha poderosa e admirada, encarna a figura materna idealizada, cuja beleza e riqueza atraem não apenas a adoração de seus súditos, mas também o amor de Oxóssi, um forasteiro. A tradição impõe que Oxum se case com alguém de seu próprio clã; no entanto, seu amor por Oxóssi desafia essa norma, levando-a a um estado de profunda tristeza quando sua paixão é rejeitada pela sociedade.
Após um período de sofrimento, a pressão social torna-se insustentável, e Oxum acaba por se casar com Oxóssi, resultando no nascimento de Logum-Edé. Ao atingir a maturidade, Logum se vê consumido por um amor incestuoso por sua própria mãe, Oxum. Sua busca desesperada culmina em uma perseguição que a força a clamar por Oxóssi, que intervém para proteger Oxum, estabelecendo um paralelo com a figura de Édipo, que também se vê preso em um destino trágico e inevitável. Após ser expulso, Logum funda seu próprio reino e, eventualmente, supera seu desejo incestuoso, mas não sem antes passar por um processo de autoconhecimento e transformação. Assim, o mito de Logum-Edé não apenas reflete a luta contra os interditos sociais, mas também a jornada de um herói que, como Édipo, deve confrontar e transcender os desejos que o ligam à sua mãe, simbolizando a busca por identidade e autonomia em um mundo repleto de tabus e expectativas sociais.
No contexto brasileiro, as relações de poder e as dinâmicas familiares são influenciadas por fatores históricos, sociais e culturais que diferem das premissas freudianas, as quais foram inferidas a partir das histéricas de seu tempo e de sua própria narrativa familiar. A reflexão sobre novas mitologias fundacionais de um povo possibilita uma compreensão ampla dos modos de subjetivação da população brasileira, desafiando, assim, a hegemonia do pensamento psicanalítico eurocêntrico tradicional. A análise decolonial propõe que a inclusão de mitos locais, como o de Logum-Edé, oferece novas perspectivas e maior relevância para as experiências e identidades não europeias na construção teórica e prática da psicanálise.
Bibliografia
MIGUELEZ, Nora Beatriz Susmanscky de. Complexo de Édipo, hoje? 2007. 215 f.
NÁSIO, J. D. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, 156p.
BASSAN, João Pedro Fraga; REDIVO DREHMER, Luciana Balestrin. Do Complexo de Édipo à Mitologia Iorubá: perspectivas de uma psicanálise decolonial.
COELHO, Marcus Nascimento. Édipo Negro. Revista África e Africanidades, ano IX, n. 23, abr. 2017.
FABRÍCIO DA SLVA
Psicanalista/Psicólogo
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