FABRÍCIO DA SILVA

RESUMO

Este artigo busca aprofundar a compreensão da racialização colonial e seus impactos na subjetividade ocidental, colocando em perspectiva o diálogo crítico entre Frantz Fanton, Sigmund Freud e Jacques Lacan. A obra “Pele Negra, Máscaras Brancas”, de Fanon, é analisada em intersecção, nos seus possíveis questionamentos e encruzilhadas com a psicanálise, mobilizando-se assim, novos questionamentos para a teoria e práxis. A obra do autor permanece como uma contribuição relevante para desvelar as dinâmicas inconscientes na subjetividade racializada, destacando sua pertinência contemporânea na compreensão da negritude, como da branquitude e suas produções subjetivas.

 

Palavras-chave: Psicanálise; Fanon; Subjetividade; raça.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O ano é 2024, apesar do que esperavam os grandes, os tempos de igualdade não chegaram em sua inteireza. Não tão ruim, pois suas lutas, seus escritos e seus sangues fizeram avançar. Deles brotaram mais reconhecimentos, mais direitos, mais vozes, que se juntam na tentativa de descortinar os véus, levando à semente fecunda da esperança do que seria a tão cantada universalidade de todas as raças.

Afirma-se também que falar de racismo está na moda. A moda esteve sempre presente na vida cotidiana do negro, do útero ao caixão. Para estes, então, não falemos de moda, mas de sua experiência vívida, como já dissera Fanon (2020). Experiência que andou à margem, mas sempre movimentada, e agora, com uma possibilidade maior de voz, quem sabe, evita-se o ato, e permanece o confronto visando alguma possibilidade de elaboração coletiva. Ou seja, com tal afirmação, diz-se que o racismo não é algo de foro individual, seus mecanismos, quais ervas daninhas, se entrelaçam na história, nos mitos, instituições, nos hábitos e costumes de cada nação e impacta direta e indiretamente a vida de seus cidadãos (Almeida, 2019).

Uma sociedade fundada num sistema racial, ou num sistema pigmentocrático, como nos dirá Moore (2007), atua, adaptando e moldando os seus membros, pois é uma relação que se retroalimenta, sabendo a quem manter vivo e quem matar, Mbembe (2016) anunciará o estado de exceção, gerido por uma necropolítica. Os dados estarrecedores, apontam ainda o caminho longo em prol da emancipação, negros representam 84% das pessoas mortas em ações policiais no Brasil. Em 2021, pessoas negras representaram 77,6% das vítimas de homicídio, enquanto pessoas brancas compuseram 67,6% das vítimas. Houve um aumento de 7,5% no número de pessoas negras assassinadas e uma queda de 26,5% nas pessoas brancas assassinadas em relação à década anterior. Segundo o fórum de segurança pública (2022), mulheres negras são as mais afetadas pela violência de gênero. Pessoas negras representam 70,7% da população carcerária no Brasil. Pode-se seguir: de acordo com o IBGE em 2019, os brancos no Brasil ganham 68% a mais do que os negros. Segundo a Rede Penssan, 65% das casas chefiadas por pessoas negras no país enfrentam situações de insegurança alimentar. No que concerne a representação, embora as mulheres negras constituam 28% da população, apenas 5,6% das cadeiras da Câmara dos Deputados são ocupadas por elas, de acordo com os dados da OXFAM BRASIL.

Um dos muitos precursores que acenou para um importante fator da racialização colonial e seus impactos na construção da subjetividade ocidental foi Frantz Fanon, que nos últimos anos tem tido sua obra recuperada, em que entre tantos temas, se debruça sobre a vida psíquica, a subjetividade e emocionalidade do negro. É em seu livro, Pele negra, máscaras brancas (2020), que se encontra não apenas um discurso sobre a negritude e a construção de uma luta pela emancipação, mas um discurso sobre a dialética do reconhecimento e suas condições de efetivação ou não, a racialização do desejo, a relação entre identidade e diferença, duplo narcisismo, e principalmente um discurso sobre a sociedade capitalista enquanto complexo (Faustino, 2022).

Fanon (2020) está dialogando com os autores de sua época, e em um rol de múltiplas ciências, como sociologia, filosofia, psiquiatria, psicanálise, entre outras. Nesse recorte, o diálogo que o autor se propõe a fazer com Freud e Lacan, serão aqui retomados, através de uma revisão narrativa de Pele Negras, Máscaras Brancas (2020), a fim de traçar as similaridades e discordâncias entre suas ideias, e como amparam, e em que medida contribuem para a compreensão da subjetividade, entendida pela introdução da ideia de inconsciente, na experiência do negro brasileiro.

Tarefa homérica, seria esmiuçar linha a linha, todas as cruzadas que Fanon se propõe a travar em sua obra, como pretende-se os estudos de Deivison Faustino (2022), de modo que, não se tem a pretensão de esgotá-lo, mas retomar alguns pontos que saltam em seu discurso e continuam a gritar no contemporâneo. Portanto, um bom ponto de partida é circunscrever o autor e sua obra.

Antes, contudo, ao se falar de uma sociedade racializada é preciso ter em vista o que Fanon (2020) irá apontar, sendo o corte que o colonialismo produz nas relações, e como incidirá, ainda que de modos específicos, tanto no sujeito negro quanto no branco. O corte colonial da dualidade mente versus corpo, em que pessoas não brancas estariam para corpo enquanto brancos estariam para mente, produz em ambas racialidades, e seu respectivo sintoma. Ressalta-se assim, que o trabalho de Fanon é lido também numa perspectiva para se pensar a produção subjetiva da branquitude.

 

2 FANON EM SEU TEMPO

 

Não é difícil começar uma biografia da vida e obra de Fanon sem que se fique estupefato, ante a uma vida vigorosa e breve. Breve, pois jovem, aos 36 anos, morre por complicações da leucemia.

Frantz Omar Fanon, psiquiatra, filósofo e ativista político francês, nasce em 20 de julho de 1925, no seio de uma família de classe média em Martinica, colônia francesa no Caribe. É considerado um dos principais pensadores do século 20 sobre as questões do colonialismo, do racismo, da descolonização e da libertação nacional. Suas obras foram pilares influenciadores nos conflitos revolucionários na África, na América Latina e em outras partes do mundo (Faustino, 2022).

Fanon recebe uma educação francesa. Estudou psiquiatria forense na Universidade de Lyon, onde assistiu aulas de Jean Lacroix, defensor do personalismo, e Merleau-Ponty, um dos principais expoentes do existencialismo francês. Desse período, destaca-se desde cedo a sua participação assídua em debates teóricos intermináveis com amigos nos cafés ao redor da Universidade e visitação as fábricas ocupadas pelos trabalhadores de esquerda na cidade (Faustino, 2022).

Como anunciado por Freud e por tantos outros psicanalistas que seguiram seus caminhos, sabe-se que muito das sublimações, das lutas, e das escolhas intelectuais adultas estão circunscritas na gramática do psiquismo infantil. Fanon, viveu o dilema de um homem de seu tempo e de sua terra, na alienação produzida pelo colonizador ao colonizado.

O mundo, a saber Europa, pensará e perpetuará nas suas colônias o nativo e sua cultura, como analisará Fanon (2020), sua linguagem como produtos inferiores, incapazes de governar a si, de modo que, o negro colonizado só será inserido na linhagem da espécie humana quando capaz de falar a língua do colono, seja ele o inglês, francês ou português. (Geismar, 1972, apud Faustino, 2022).

A Martinica de Fanon era uma sociedade colonial com a máscara francesa, mas que sofria com as agruras de sua própria negrura. A busca pela aproximação ao europeu tornou-se a norma e o seu oposto foi patologizado. A exaltação dos valores europeus na ilha era sempre acompanhada pela negação sistemática de todas as dimensões humanas dos nativos. Fanon foi profundamente afetado por essa negação de sua identidade e humanidade. Cresce e percebe-se em um ambiente em que a língua francesa era valorizada em detrimento do crioulo, estabelecendo a cultura europeia como superior. Essa ideologia assimilacionista sofreu dois duros golpes: o primeiro veio com a chegada dos soldados franceses à Martinica durante a ocupação alemã na França, e o segundo durante a participação de Fanon no tour de resistência contra o Regime de Vichy (Faustino, 2022).

O autor também foi influenciado por Aimé Césaire, seu professor no Lycée Victor Schœlcher (instituição exclusiva para negros), e participou da campanha política de Césaire para prefeito de Fort-de-France pelo Partido Comunista. No entanto, Fanon passou a se diferenciar cada vez mais de Césaire, especialmente no trato reservado ao movimento da Negritude. Ele sofrerá influência de Georges Balandier e seu conceito de situação colonial, uma vez que falava do colonialismo como um fenômeno social total que compreende tanto as dimensões econômica, política e cultural quanto a dimensão psíquica da dominação (Faustino, 2022).

Em 1953, Fanon aceita um cargo de chefe de psiquiatria no hospital de Blida-Joinville, na Argélia, então uma colônia francesa. Lá, entra em contato com a realidade opressiva do colonialismo e testemunha o início da guerra de independência da Argélia contra a França, em 1954. Fanon se solidariza com a causa argelina e renunciou ao seu cargo no hospital, rompendo com a França. Se junta à Frente de Libertação Nacional (FLN), o principal movimento de resistência argelino, e se torna um de seus principais porta-vozes no exterior (Fanon, 2020).

Fanon escreveu vários livros e artigos sobre a psicologia, a cultura e a política dos povos colonizados e colonizadores. Entre essas obras estão: Pele negra, máscaras brancas, publicado pela primeira vez em 1952, que analisa os efeitos do racismo e da assimilação cultural sobre os negros; Os condenados da terra de 1961, que defende o direito dos povos colonizados à violência revolucionária e à autodeterminação; e Por uma revolução africana (publicado postumamente em 1964), que aborda os desafios e as perspectivas do processo de descolonização na África. Em 1961, diagnosticado com leucemia, Fanon é transferido para um hospital nos Estados Unidos para tratamento, ciente de que sua doença não tinha cura. Vem a falecer em 6 de dezembro de 1961, aos 36 anos, deixando uma esposa e quatro filhos. Seu corpo foi levado para a Argélia e enterrado com honras militares (Faustino, 2022).

 

3 FANON, LINGUAGEM E SUBJETIVIDADE

 

Fanon (2020) tece críticas a teoria freudiana, principalmente na configuração de uma neurose edipiana em sua cultura. Desse modo interroga do saber psicanalítico na compreensão da etiologia do sofrimento psíquico das pessoas negras. Ele destaca que a psicanálise tem como foco o estudo de reações neuróticas dentro de contextos específicos, como a família, onde a tarefa do analista residiria em encontrar os elementos infantis repetidos ou em conflito na estrutura psíquica do indivíduo.

O autor (2020) irá ressaltar que a situação apresenta nuances quando se trata da experiência dos negros. Enquanto na Europa a família representa a forma como o mundo se apresenta à criança numa relação estreita entre estrutura familiar e nacional, em sociedades fechadas há a projeção das características familiares no meio social. Como muitos de sua época, se posicionou criticamente à teoria clássica do complexo edípico freudiano. Em suas palavras:

 

mas, além de nos perguntarmos se os etnólogos, imbuídos dos complexos da sua civilização, afinal não se esforçaram para encontrar a cópia destes nos povos por eles estudados, seria relativamente fácil para nós demonstrar que, nas Antilhas francesas, 97% das famílias são incapazes de gerar uma neurose edipiana. Incapacidade digna de todo o nosso louvor (Fanon, 2020, p. 167).

 

Neste mesmo parágrafo Fanon (2020) deixa uma nota, endereçada a um tal “dr. Lacan”, mais uma das notas que percorrem toda a sua obra com peculiar deferência, mesmo que discordando deste, como ocorre na questão do Édipo. Infelizmente, devido a morte prematura, não acompanha todo desdobramento do pensamento de Lacan. Isso permite circunscrever até que ponto o autor dialogou com a teoria psicanalítica, até que momento acompanhou o desenvolvimento desta no tempo. Ainda assim, Fanon deixou uma obra fecunda, que reverbera até nossos tempos.

Como demonstrado, Fanon (2020) também se utiliza da psicanálise e especialmente da teoria do espelho de Lacan (1998), inclusive para criticar a compreensão e a posição da psiquiatria colonial, que utilizava uma classificação racista para categorizar as diferenças entre as populações. Ao invés de utilizar uma abordagem que reforça a hierarquia entre as raças, a teoria do espelho, conforme por ele articulada, permitiria entender a construção da identidade negra a partir de processos psíquicos ‘universais’, que estão presentes em todas as culturas.

Explanando sua ideia em uma em uma extensa nota, Fanon (2020) articula a identidade racial e a percepção do “eu” nos contextos das Antilhas e da França, utilizando do aparato teórico psicanalítico. A imagem de si mesmo, formada por um branco, é questionada quando confrontada com a presença de uma pessoa negra, revelando a complexidade das relações raciais. Nas Antilhas, a percepção do outro é frequentemente baseada na comparação com a “essência do branco”, resultando em uma distinção hierárquica entre os seres.

Nessa nota, Fanon (2020) aborda a internalização de estereótipos raciais nas Antilhas, onde a aparência física é comparada com um padrão de brancura. A cor da pele é frequentemente associada a atributos como inteligência e respeitabilidade, perpetuando a suposição de que ser branco é ser superior. Fanon (2020) nos dá diversas situações nas quais negros são ridicularizados, seja por sua cor ou por sua suposta falta de visibilidade em ambientes escuros.

A autoscopia, ou a percepção da própria imagem, é discutida em relação à questão racial e à formação da identidade. Fanon (2020) sugere que, para os antilhanos, a percepção de si mesmo é geralmente neutra em termos de cor e baseada na comparação com os brancos. Ao pensar a generalização feita por ele (2020) em relação aos antilhanos como um bloco homogêneo, interroga-se se neste momento não se poderia avançar na compreensão contemporânea, evitando correr o risco de cair em uma performatividade que tende a perpetuar uma essência fixada no tempo deste, que se contrapõe inclusivamente a ideia de sujeito como pensada pela psicanálise e pelo próprio autor.

É relevante observar que o progresso em relação a essa questão pode variar dependendo do campo de estudo e das circunstâncias específicas. As leituras psicanalíticas examinam os mecanismos psíquicos envolvidos na percepção de si mesmo e do outro, considerando as dinâmicas inconscientes que permeiam a formação da identidade racial, que também não são estanques, mas plurais (Afonso, 2018).

Fanon (2020) diz que a imago do semelhante, ou a imagem de uma pessoa negra, é frequentemente vista como o outro tanto para os brancos quanto para os negros, indicando uma divisão fundamental na percepção de si mesmo e do outro baseada na raça, mesma ideia que o estudo de Souza (1983/2021), que mostra o papel significativo da percepção do corpo negro na constituição subjetiva, além de uma percepção que frequentemente se vê com o imaginário branco.

Ao analisar a linguagem, o autor (2020), avalia seu impacto no processo de subjetivação dos colonizados, entende que “um homem que possui a linguagem possui, por conseguinte, o mundo expresso por essa linguagem e implicado por ela” (Fanon, 2020, p. 31), assim, mostra em sua obra como mais branco se torna o martiniquense quanto mais dominava e se apropriava da língua do colonizador. A língua seria assim esse elemento que coloca o colonizado no mundo social, subordinando suas aspirações ao império da metrópole. Assim, esses estão reduzidos à suposta realização de uma ficção de ser. E uma vez relegado a posição de um proto-homem não estão, no lugar do ‘civilizado’, e somente o será, na medida em que maior for seu embranquecimento ou com a aquisição de uma fictícia negritude. (Barros, 2019, Fanon, 2020).

Se a cultura de um povo é sua língua, Schwarcz (1996) ratifica que o racismo é uma forma de linguagem social, portanto, simbólica, que é visível em nossos provérbios, por exemplo, “de noite, todos os gatos são pardos” e “eles que são brancos que se entendam”, sentenças que em países diferentes tem pesos diferentes e que no Brasil denotam o lugar ou não lugar dos negros: “já no Brasil, onde a cor negra vem sempre repleta de significados simbólicos, a sentença ganha outra compreensão. Quem sabe, “à noite, todos são perigosos” […] Quando escurece, diante da polícia, qualquer um é negro e, portanto, suspeito.” (Schwarcz, 2019, p. 89-90).

Barros (2019) analisando o intercâmbio de Fanon (2020) com a linguagem avalia que ela:

determina uma forma de ser no mundo, de estar aí em relação a, fundamentando-se a partir dos processos sociais implicados no mundo concreto. Assim, se, por um lado, adotar a linguagem do colonizador implica uma desestruturação da identidade, por outro, é a partir dela que o negro/colonizado toma posição contrária e se acerca dos seus limites (Barros, 2019, p. 44).

 

Fanon (2020) também ressaltou em sua obra como a teoria do inconsciente freudiano substitui uma concepção filogenética, para ontogenética, mas destaca um novo eixo, lança mão do termo sociogenia, que pode ser lida como o espaço cultural, social e econômico que influencia e permite a pessoa manifestar a sua singularidade, ou seja, seu inconsciente. Nesse sentido, poderíamos pensar como outros psicanalistas anteriores a Fanon (2020) trouxeram a questão da importância do ambiente na constituição da subjetividade, como encontramos em Freud (2010), Klein (Segal, 1975) e Winnicott (1983), entretanto, não arguiram sobre a temática da raça. Indícios do eurocentrismo desta? Ou de uma alienação ao hegemônico, travestido de uma identidade invisível, pretensa a universalidade? (Preciado, 2022).

O caminho ainda é o de produzir resposta, entretanto é Fanon, com sua sagacidade clínica que pensa a sua realidade e o seu tempo, a ilha de Martinica, pela lente da psicanálise. Sua peculiaridade, de num país fervendo pelo horror da colonização, identificar essa forma de dominação como vetor constitutivo da vida da população negra e não negra.

 

4 FANON, EM NOSSO TEMPO E TERRITÓRIO

 

Para circunscrever Fanon (2020) em seu tempo, e em sua obra há que se reconhecer do que este trata, e logo encontra-se o retrato da experiência do negro diante da sociedade branca. O negro que vive em seu país, mas ao chegar à Europa, se sente diferente dos outros e é inferiorizado, o negro em que a família antilhana tem pouca relação com a estrutura nacional europeia, onde este indivíduo se vê obrigado a escolher entre sua família e a sociedade europeia (2020).

Fanon (2020) faz uma leitura na qual a estrutura familiar está vinculada a um simbólico e o indivíduo negro enfrenta a atitude subjetiva do branco, percebendo a irrealidade das proposições absorvidas anteriormente. Essa experiência leva a uma verdadeira aprendizagem, na qual o negro confronta um mito enraizado e enfrenta a resistência da realidade, enfatizando a consciência dos complexos de inferioridade dos negros, que são objetificados e fetichizados.

Nesse sentido, tenta-se seguir o exemplo de Fanon (2020), olha-se para casa, Brasil. Em matéria de psicanálise, como acreditar que passamos desapercebidos pelo histórico da escravidão e do colonialismo? Como analisa Souza (1983/2021):

A representação do negro como elo entre o macaco e o homem branco é uma das falas míticas mais significativas de uma visão que o reduz e cristaliza à instância biológica. Essa representação exclui a entrada do negro na cadeia dos significantes, único lugar onde é possível compartilhar do mundo simbólico e passar da biologia à história (Souza,1983/2021, p. 57).

 

Sua fala ajuda a conectar todo o percurso histórico do conceito de raça, como culturas nasceram e morreram, carregando o saber e o poder, evoluindo a classificação, sobre humanos, negros, que seriam menos humanos, e, portanto, não pertencente ao mesmo mundo, ao menos, não ao mesmo ordenamento (Munanga, 2003). Negar alguém a um simbólico, é negar a entrada nesse mundo que ora se deu de modo claro escravizando, torturando e matando, ora de modo sutil ou não tão sútil a depender de sua localidade em nosso extenso mapa. Sutilmente nos ditos, no ingênuo ‘cabelo ruim’, que nada tem de ingênuo, mas que fora e continua sendo utilizada para descrever cabelos com textura afro, sugerindo que não são tão desejáveis quanto cabelos lisos ou ondulados (Souza, 1983/2021; Freitas, 2018). Sutilmente no mercado de trabalhos, onde negros brasileiros enfrentam níveis mais altos de desemprego e são mais propensos a trabalhar em empregos de baixa remuneração do que seus colegas brancos2. E sutilmente na mídia, onde a imagem dos negros brasileiros são frequentemente sub-representados ou deturpados nas novelas (Lima, 2000).

Para complementar, um dos vários depoimentos colhidos no trabalho de Souza (1983/2021, p. 104) e que aqui poderiam também ser colocados para exemplificar a mítica racista de cada dia

 

Eu estava crescendo como artista, e então ia sendo aceito. Aí eu já não era negro. Perdi a cor. Todo esse jogo era vivido por mim de modo contemporizador. Eu não tinha como me confrontar. Não discutia muito a questão. Ia vivendo. O racismo continuava. Eu era aceito sem cor, mas eu ia vivendo. Esse jogo era o meu jogo também (Alberto).

 

Freitas (2018) em uma autoanálise avalia:

 

Com o avançar das reflexões notei que o processo de aceitação do cabelo crespo foi fundamental para a construção da minha identidade negra. O sistema do racismo é tão enraizado nas estruturas sociais que ele rege as relações dos indivíduos a ponto de, mesmo quando um indivíduo não se reconhece enquanto pertencente a uma raça estigmatizada, ele sofrer com a marginalização que lhe é imposta (Freitas, 2018, p. 10).

 

Durante o período colonial, o Brasil foi uma colônia explorada economicamente pelas potências europeias, como Portugal. A escravidão foi um dos pilares dessa exploração, em que milhões de africanos foram trazidos à força para trabalhar nas plantações e nas minas, prática desumanizante e brutal que deixou um legado de sofrimento e opressão para os negros, que foram tratados como mercadorias e privados de seus direitos mais básicos (Holanda, 1995).

Estes são marcadores importantes para entendermos a construção do racismo estrutural que foi mantido ao longo dos séculos como uma ideologia de supremacia branca, justificando a inferiorização dos negros e a perpetuação de privilégios para a população branca (Batista, 2018). Essa mentalidade racista foi internalizada na sociedade brasileira, influenciando suas estruturas e instituições (Batista, 2018). Como resultado, persistem disparidades econômicas, educacionais, sociais e de oportunidades entre brancos, negros e demais etnias. Os discursos transcritos acima, não foram produzidos do nada, para se constituírem necessitaram de uma base estrutural, e implicitamente marcam a influência do colonialismo, da escravidão e do racismo na formação da sociedade brasileira (Holanda, 1995). Esses eventos históricos estabeleceram estruturas e relações de poder que na visão dos autores, continuam a perpetuar a desigualdade racial e a discriminação até os dias de hoje.

Fanon (2020), utilizou a psicanálise para entender seu tempo, e o que fazia adoecer seu povo, não seria possível a mesma reminiscência histérica. Da França herdara o saber que emanciparia sua condição da de outros, para isso, compreender os fatores históricos e culturais do qual era também subalterno foi fundamental para trabalhar com os seus pacientes. Fanon (2020), argumenta que a civilização branca e a cultura europeia impuseram ao negro um desvio da existência, ou seja, um não lugar, em suas palavras “aquilo que é chamado de alma negra é uma construção do branco”, a ele como crítico coube denunciar essa perspectiva eurocêntrica nos estudos psicanalíticos (Fanon, 2020, p. 28).

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Fanon (2020), permanece não só como um autor atual, como também inspirou dentro da psicanálise movimentos, como nos trabalhos trazidos por Barros (2019) e Batista (2018). Com Fanon, possibilitou-se uma análise das implicações históricas, culturais e psicológicas do colonialismo, da escravidão e da ideologia de supremacia branca na construção da identidade negra. Através da análise de discursos produzidos por personalidades públicas, mas não apenas, identifica-se como o racismo se reproduz e se naturaliza no imaginário social, gerando efeitos nocivos para a subjetividade dos negros e não negros.

Seus diálogos com a teoria psicanalítica, abordou temas e conceitos datados, como o complexo de édipo, contudo, colocou e apontou para silenciamentos e para o eurocentrismo dela. Através do seu conceito de sociogenia, busca expandir e contextualizar, dar borda ao psiquismo, sem desconsiderar o homem pulsional. Encontra-se o homem, um psíquico e uma estrutura (meio) que o aliena, não a uma condição de sujeito, mas de proto-homem.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: Teoria, política e subjetividade. Ubu Editora: São Paulo, 2022.

 

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WINNICOTTI, Donald. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Trad. por Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre, Artmed, 1983.

 

1 Psicólogo, graduado pelo Centro Universitário do Norte Paulista (UNORP), Psicanalista, pós-graduado em Psicanálise (Faculdade Einstein/Núcleo de Pesquisas Psicanalíticas). Pós-graduando em Psicopatologias Psicanalíticas (NPP). E-mail: [email protected]

 

2 Para nos situarmos, dados de 2019, a taxa de desemprego entre a população negra era de 14,7%, enquanto entre os brancos era de 10%. No Distrito Federal, a disparidade também foi observada, com 20,9% de desempregados no grupo negro em comparação com 15,3% no grupo branco. Além disso, os pretos e pardos são maioria em setores com remuneração mais baixa, como agropecuária (60,8%), construção civil (63%) e serviços domésticos (65,9%). Essas atividades apresentaram os menores rendimentos médios em 2017. Mesmo quando possuem nível de escolaridade equivalente aos brancos, os negros costumam receber salários menores. No caso de pessoas com ensino superior, as médias salariais em 2017 foram de R$ 31,9 por hora para brancos e R$ 22,30 por hora para negros, representando uma queda de 43,2%. Dados estatísticos de Martins e Oliveira (2019) podem ser acompanhados.

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